"Não precisamos de autoridade nenhuma na Palestina"
Foi na Cisjordânia que aprendi a ser anarquista. Que aprendi que não precisamos de mais ninguém que nós próprias para cuidar de nós mesmas. E não tenho como agradecer.

Texto originalmente publicado na newsletter do centro social anarquista Disgraça.
“Eu odeio vir aqui, porque é tão perto.” Abeer Alkhateeb diz-nos que só voltou a este pedaço de estrada porque nos quer mostrar como é já ali. Di-lo enquanto aponta para o horizonte — um horizonte literal e também metafórico. Al-Quds. Jerusalém. Estamos numa rua quase deserta, um carro ou outro, de quando em vez. Ao longe, vê-se a cidade prometida, sol a pôr-se, já cor-de-rosa-laranja, uma luz que só aqui se encontra, na Palestina. Eu fico atrás do meu telemóvel, a captar uma imagem que espero um dia poder esquecer: duas mulheres a olhar ao longe uma cidade que só uma delas pode pisar. “É tão perto”, diz Abeer Alkhateeb. Tão perto que o seu pai, em tempos não tão longínquos, lá ia desde aqui mesmo, onde estamos, até lá, de burro. Tão perto que era lá que ela e a sua família fazia compras, quando era criança: “Nessa altura, nós não sabíamos o que era Ramallah ou Qalandia.”
Depois veio o muro do apartheid. “Quando o muro veio, destruiu tudo.” Famílias foram separadas, vilas atravessadas a meio, gente impedida de visitar os lugares que sempre visitaram. “Todas as vilas [aqui perto] estão rodeadas pelo muro.”, diz Abeer. E estão. Mostra-nos uma vila: cercada. Mostra-nos outra: cercada. E, lado a lado com o muro, vão-se vendo colonatos, aqui e ali, crescendo a cada ano, cada vez mais perto das populações, engolindo cada pedaço de terra. Eu penso para mim: será que, quando cá voltar, estas casas ainda vão existir? Mas não digo em voz alta.
Continuamos de carro por uma estrada que é mais buracos que alcatrão. Abeer Alkhateeb vai apontando para a esquerda e para a direita, para plantações de vegetais de famílias que se recusam a sair, venham estes e outros muros, venha o que vier. Uns metros mais à frente, diz; “É um projeto meu e do Munther [Amira].”, apontando para dezenas de oliveiras jovens, com cerca de três anos, firmes, à beira do muro, como se estivessem a fazer frente ao projeto colonial sionista. Uns metros mais à frente: “Estas oliveiras plantámos há dois meses.”, diz Abeer Alkhateeb. “São os vossos guerrilheiros.”, digo eu, do banco de trás. “Alhamdulillah [graças a deus], nós tentamos.”
Abeer Alkhateeb leva-nos a outra vila atravessada pelo muro. “Yalla”, diz-nos, enquanto abre a porta do carro. Descemos uma colina, sempre com o muro a vigiar-nos lá de cima e, ao fundo, vai aparecendo um e outro miúdo, não mais que 10 anos, a jogar à bola, num descampado, com duas balizas de futebol, com ar de campo abandonado pelo tempo. “Nós fizemos esta coisa estúpida para proteger a terra.”, diz, enquanto nos explica que ela e alguns companheiros decidiram construir com as próprias mãos duas balizas de futebol, há três anos, como forma de prevenir que os sionistas tomassem mais um pedaço de terra. “Um dia, vocês vão voltar aqui e vai haver luzes e umas escadas e um estádio e uma piscina. É uma coisa muito estúpida mas, inshallah [oxalá], o nosso sonho é que continue.”
Eu não acho uma coisa estúpida, digo. E ensaio na minha cabeça como explicar-lhe, sem parecer um branco-lambe-botas, que esta é, na verdade, uma das coisas mais bonitas que vi. Que não há outro lugar no mundo onde tenha aprendido tanto como na Cisjordânia. Não consigo. Fico com isto às voltas na minha cabeça. Não é o ato de construir duas balizas num descampado que é particularmente excecional. Nem as oliveiras junto ao muro que são particularmente saudáveis. Nem a horta à beira de colonatos que é particularmente produtiva.
Horas depois, já de volta a sua casa, na sala de estar, avanço com uma teoria: é que foi aqui que aprendi a ser anarquista. Que aprendi que não precisamos de mais ninguém que nós próprias para cuidar de nós mesmas. Que, mesmo em terra ocupada, oprimida por quem a quer limpar condenando à morte prematura todo um povo, há quem se junte para criar vida. Que, mesmo quando “o governo” só existe no papel, perpetuando a ocupação, ninguém dorme na rua, ninguém passa fome. Que, quando, durante uma pandemia global, ninguém podia sair de casa, as gentes se organizaram em redes de apoio mútuo. Que, quando, depois de 7 de outubro, tantos ficaram sem empregos, coletivamente se angariou fundos para a sua sobrevivência. Que, quando os sionistas demolem casas, abrigos, poços, escolas, há quem as vá construir novamente. Sem precisar de um estado nem ninguém a quem pedir autorização. E não tenho como agradecer isso que aprendi. Abeer Alkhateeb sorri e traduz para o marido, que se senta ao lado. Depois, vira-se de novo para nós e diz: “Aqui, as pessoas organizam-se a elas próprias. Antes de existir ocupação, antes de existir Autoridade Palestiniana, nós já nos organizávamos sozinhas. Não precisamos de autoridade nenhuma.”