Jenin, Jenin, Jenin

Quando as tropas sionistas invadiram a semana passada o campo de refugiados de Jenin, escreveram apenas um novo P.S. à contínua destruição que lá inflige o regime sionista.

Jenin, Jenin, Jenin
Fotografia tirada por mim, em Ramallah, durante o funeral de Shireen Abu Akleh

Texto publicado originalmente pelo Fumaça, na newsletter semanal da redação.

A gente palestiniana que vive no campo de refugiados de Jenin consegue ver, ao longe, algumas das terras de onde é natural, mesmo que não tenha lá nascido nem alguma vez lá podido entrar. Ao invés, está confinada a um espaço de menos de um quilómetro quadrado que, de quando em vez, o exército sionista invade para destruir. O carro que nos leva vai balouçando, como que para nos fazer reparar como a estrada foi destruída pelas tropas sionistas em jeito de punição coletiva pela luta de guerrilheiros de movimentos de resistência no campo. Avistam-se imagens de mártires pelo campo e por toda a cidade, a cada rua. Quase sempre jovens, alguns ainda com ar de criança. Chegamos a uma estrada onde, em dias de céu limpo, como este, se vê ao longe a vila de Nazaré, de onde a família de Jesus (Cristo), judeu e palestiniano (se existiu), era originária. Uma cidade quase exclusivamente palestiniana para lá do muro do apartheid, nos territórios ocupados em 1948 (a que parte do mundo chama “Israel”). Y, chamemos-lhe assim, também ele refugiado, mas de Haifa (igualmente nos territórios de 1948), diz-nos: “É muito doloroso ser refugiado. Eu via a dor nos olhos dos meus pais. A minha mãe sonhava em voltar a ver Haifa e morreu sem ter conseguido. É muito doloroso. O que é que é suposto os miúdos deste campo fazerem?”

Este é dos locais mais tristes em que estive na vida. Lojas destruídas por bombas, casas com marcas de dezenas de balas, edifícios queimados, estradas levantadas por bulldozers, e cemitérios com meses, apenas, em memória de mártires recentes. Enquanto visitamos o cemitério, um jovem posa para uma fotografia com uma espingarda nos braços e uma bandana na cabeça. Atrás dele, veem-se vários posters com gente de idade semelhante e pose igual. Não tem mais do que 15, 16 anos. O rapaz que o fotografa também. Y comenta em voz baixa que “talvez este miúdo seja o próximo.” Quero acreditar que não.

Saímos do cemitério e o cenário de devastação continua, nem é preciso procurá-lo. Uma escola das Nações Unidas semi-destruída, uma rotunda tornada destroços (e apenas mais uma das várias estátuas roubadas por sionistas em Jenin; eu contei seis), um nada que era, há menos de um ano, um café onde gentes se juntavam para conversar e fumar shisha. Depois, um drone despejou as bombas que o fizeram desaparecer, ao café e a quem estava lá dentro. O proprietário passa por nós, a coxear (não quero sequer perguntar o que lhe aconteceu à perna), cumprimenta Y, de sorriso na cara. Tudo parece normal. Y pergunta quantas pessoas morreram naquele bombardeamento, em junho: quatro, conta. Tudo normal. 

Damos cinco ou seis passos para o lado. Y diz: “Olhem, foi aqui que morreu Shireen Abu Akleh. Olhem, [as marcas d]as balas.” “Wow”, respondo. Lembro-me bem desse dia, estava cá, na Cisjordânia. Acordei com a notícia de que a jornalista mais famosa da Palestina tinha sido morta por um sniper do exército sionista enquanto reportava desde aqui, vestindo um colete com a palavra “PRESS” em letras garrafais, cobrindo mais uma invasão ao campo de refugiados de Jenin para a cadeia de televisão Al Jazeera (por estes dias ilegalizada pelo estado sionista). Agora, na semana em que se cumprem dois anos do seu assassinato, estou aqui eu, exatamente no mesmo sítio, também jornalista (mas não palestiniano, o que muda tudo), olhando os posters que lembram a sua morte e as marcas das balas que ficaram nos troncos das árvores. Shireen Abu Akleh não foi morta por ser jornalista, foi morta por ser palestiniana e jornalista. Não tenho mais palavras, não sei o que mais dizer. Se peço desculpa, se pergunto a Y como se sente, se choro, se fico calado. Faço a única coisa que consigo, que é cumprir o último pedido do poeta palestiniano Refaat Alareer, assassinado em Gaza por bombardeamento: “Se eu tenho de morrer. / Tu tens de viver. / Para contar a minha história.” E escrevo este texto. E conto esta história.

Registei-a nestes parágrafos dois dias antes do segundo aniversário do assassinato de Shireen Abu Akleh e, sem qualquer previsão mas também sem surpresa, 13 dias antes de o exército sionista ter voltado a invadir Jenin. Até agora, sete pessoas foram mortas, mais de uma dezena feridas e várias estradas destruídas. Tudo normal.