Contra os mega festivais de verão
Nos próximos meses, haverá uma avalanche de mega festivais de verão. Mas também muitas festas tradicionais em aldeias por aí fora.

Texto publicado originalmente pelo Fumaça, na newsletter semanal da redação.
Tirando os dias de nevoeiro intenso, em que a aldeia fica submersa numa nuvem espessa, em que se não vê mais do que uns metros à frente dos olhos, é impossível passar por Pitões das Júnias e não ver o ponto branco que, no topo de um monte na Serra do Gerês, lá bem no alto, nos olha de cima. O ponto branco tem nome de santo — São João da Fraga — e tem forma de uma pequena capela onde não cabem mais do que cinco ou seis pessoas. É um mistério ainda por decifrar por que razão alguém faria por construir tal edificado num lugar tão elevado, tão acidentado, tão íngreme. É mistério também como foi a pedra que lhe deu estrutura até lá carregada, ou em que anos se deu a obra, ou quem a construiu, ou se realmente era cristã, ou lá se botou a cruz mais tarde.
O que não é mistério algum é porque a Capela de São João da Fraga é, hoje e sempre, o ponto mais branco de Pitões das Júnias. A tradição é já antiga e leva, todos os anos, uma semana antes da celebração do santo — os rapazes mais novos e solteiros (e mais quem se junte) em romaria desde o Largo do Eiró, no centro da aldeia, à capela, para a caiar de branco. No dia anterior faz-se a cal, que se leva em pesados jerricãs serra acima. A meio caminho, numa pequena lagoa, enchem-se mais uns quantos contentores com água e segue-se. São quase cinco quilómetros de caminhada até lá chegar com dezenas de quilos de água e cal em braços e uma parte final de trilha que vai ficando cada vez mais inclinada, cada vez mais quente, cada vez mais exposta ao sol.
A vista desde a capela é deslumbrante: uma panorâmica de 360º composta pela serra do Gerês; o planalto da Mourela; a barragem de Paradela, cheia; e Pitões das Júnias que, vista dali, quase nem parece uma das aldeias mais elevadas do país. Mas não foi para ver as vistas que subimos 16 pessoas ao monte. Nas horas seguintes, pegamos em trinchas, pincéis e baldes de tinta, e fizemos o melhor que pudemos para deixar a capela, uma vez mais, caiada com o branco mais branco da Serra. No fim, descemos já de jerricãs vazios até ao carvalhal, onde uma série de outra gente preparava o churrasco que nos alimentou tarde e noite fora.
A pintada da capela de São João da Fraga marca o início das festas de Pitões das Júnias. Dois dias depois, numa segunda-feira, voltaram as festividades para marcar a véspera do dia de São João (desta vez, o Batista, não o da Fraga), com churrasco e uma charanga. No fim da música, juntou-se novamente a gente para ir à serra escolher um carvalho, cortá-lo, carregá-lo num trator e trazê-lo para o Largo do Eiró, para honrar as festas. Ainda hoje lá está o carvalho, enfeitado de fitas às cores, em modo arraial. Terça-feira, dia seguinte — de São João —, houve missa, procissão, charanga e, pela noite, um conjunto musical que animou a noite durante horas.
Mas isto foi só o aquecimento para a grande festa da aldeia. Já de capela caiada e tinta seca, no domingo seguinte à celebração do São João Batista (o que se celebra, também, no Porto e em Braga, por exemplo), celebra-se anualmente o outro São João, o da Fraga. As celebrações começaram na noite anterior, com mais um conjunto musical no Largo. Na manhã seguinte, juntaram-se novamente as gentes — aí, vêm casados e solteiros, novos e velhos — e seguiram o padre em procissão até à Capela, novamente, agora para ouvir a missa em honra do santo. Foram dezenas e dezenas de pessoas. De caminho, via-se já outras dezenas no mesmo carvalhal onde uma semana antes se comeu, preparando novamente o repasto.
Ao voltar abaixo, já depois da missa, a paisagem é das mais bonitas festas em que estive: centenas de pessoas, dezenas de famílias e grupos de gente amiga, umas deitadas na relva, em mantas coloridas, outras com cadeiras e mesas de levar para a rua, outras em tratores ou carrinhas de caixa aberta. Toda a gente com comida caseira para partilhar, vinho de todos os lugares, churrasqueiras acesas com fogo comunitário, gaitas, concertinas, pandeiretas, bombos, música e dança. A festa continuou durante horas no carvalhal e prolongou-se noite dentro no Largo do Eiró, novamente, com mais um concerto.
O início do verão traz, a Pitões das Júnias, à Raia, e a tantas aldeias e regiões, muitas das mais importantes festas tradicionais e folclóricas que se celebram anualmente. E traz também, a muitos outros locais, uma avalanche de mega festivais de verão onde dezenas de milhares de pessoas passarão.
Só que, por um lado, os mega festivais de verão, com algumas das bandas e artistas mais populares do mundo e cartazes cheios das mais variadas atrações, encavalitadas ao mesmo tempo umas das outras, são espaços de exclusividade, alicerçados em lógicas capitalistas com o objetivo de transformar as experiências culturais de mares de gente no lucro de poucos empresários. São eventos autoritários, hierarquizados, desenhados como centros comerciais para a produção de sentimentos de escassez: “compra já o teu bilhete e paga 100€ em vez de 150€”; “paga o bilhete completo antes que esgote”; “entra no recinto primeiro para conseguires ver a tua banda favorita sem teres milhares de pessoas à tua frente”; “chega ao acampamento uma semana antes para encontrares um lugar à sombra”; “vai à casa de banho agora porque, mais tarde, a fila será gigantesca”; “proibido trazer comida e bebida, tudo deve ser comprado no recinto”. Os mega festivais de verão são, também, uma montra para grandes marcas. Se, nas festas de Pitões das Júnias, é impossível não ver o ponto branco que, lá bem no alto, nos olha de cima, nos mega festivais de verão, o que é impossível não ver são os anúncios publicitários em todos os ecrãs gigantes, em loop infinito; as tarjas caídas ao redor dos palcos; as tendas vip com nome de empresa multinacional; as bancas de comida e bebida vestidas com logotipos que nos gritam aos ouvidos; e até os nomes dos eventos, quase sempre precedidos pela marca que mais dinheiro chegar à frente. Os mega festivais de verão são, em essência, o expoente máximo da cultura como mercadoria transacional, em que tudo se paga e tudo se vende. É por isso irónico ouvir, da boca de um dos donos disto tudo, Álvaro Covões, CEO da Everything is New, produtora do NOS Alive, um dos grandes exemplos desta cultura, que sente “uma enorme preocupação, uma gigantesca preocupação, o país ser vendido a capital estrangeiro em todas as áreas”.
Por outro lado, as festas tradicionais que irão acontecer, nos próximos meses, em tantas aldeias por aí fora, são o oposto disso. Ao invés de serem produtos de grandes empresas com vista ao lucro, são organizadas pelas pessoas. Em Pitões das Júnias, as celebrações do São João da Fraga são organizadas pelos “rapazes mais novos e solteiros da aldeia”. As do São João Batista vão calhando a cada bairro, trocando a responsabilidade de ano a ano. Ao invés de se comprar caríssimos “passes” para entrar no recinto, cada pessoa dá o que consegue, de maneira a que se angarie dinheiro suficiente para pagar aos músicos. Ao invés de se comer e beber de barracas com marcas de empresa gigantescas e multinacionais, partilha-se o que se traz de casa, ou cozinha-se no fogo partilhado, ou vai-se aos cafés, às tabernas, aos tascos geridos por gente que cá vive. Se os mega festivais de verão são eventos autoritários, hierarquizados, de exclusividade, as festas das aldeias por aqui fora são espaços comunitários, de partilha, de aprendizagem, de celebração de tradições ancestrais perpetuadas com o objetivo de unir as gentes à volta de algo coletivo.
Este verão, quando estiveres a planear por onde viajar, ou a que eventos assistir, pensa duas vezes antes de entregares centenas de euros a mais uma empresa que quer vender-te experiências culturais em forma de lata de sardinha e em troca do seu lucro. Como aprendi a semana passada, dizia o ceramista José Teixeira, de Paradela (aldeia vizinha), — que, infelizmente, não cheguei a conhecer — procura antes “um garfo com duas forquilhas”. Em vez de procurares pelo cartaz com as bandas mais apelativas e te pores no carro a caminho do festival de verão da moda onde podes comprar cultura como mercadoria, procura as festas tradicionais com que possas aprender que há mais mundo do que o capitalismo quer que saibamos. De certeza haverá uma dessas festas perto de ti, basta olhar para os cartazes nas bermas das estradas.