Afinal, quem pode ser jornalista?
A missão da CCPJ tem sido tentar censurar a resistência ao statu quo dentro da classe. Até que fiquem os mesmos de sempre.

Texto publicado originalmente pelo Fumaça, na newsletter semanal da redação.
Em novembro de 2019, parte da redação do Fumaça foi até ao Pestana Palace Lisboa Hotel para receber um dos mais aclamados prémios de jornalismo do país: o Prémio Gazeta. A distinção foi uma das primeiras que recebemos e, olhando para trás, é claro que serviu para mudar a forma como éramos vistas por pares. Se, no início, o Fumaça era visto, creio eu, com desconfiança pela maioria de camaradas jornalistas de outras redações — algo entre os “putos arrogantes” e os “jornalistas-ativistas” —, foi por volta desta altura, em 2019, que senti que a qualidade do jornalismo que íamos publicando começava a ser reconhecida entre a classe.
Nessa noite, eu, o Pedro Miguel Santos e o Bernardo Afonso vestimos as nossas melhores camisas e preparámo-nos para uma gala dominada por homens brancos de classe média-alta, muitos deles com poder. A fotografia que guardámos desse momento espelha o contraste: seis homens de fato escuro e camisa clara com cara de poucos amigos, entre eles o então presidente da Câmara Municipal de Lisboa e o ainda presidente da República, ao lado de três jovens de camisa colorida.
O discurso que li nesse dia começava por dedicar o prémio recebido, pela série Palestina, histórias de um país ocupado, a todas as pessoas que nos tinham recebido na Cisjordânia e em Jerusalém em 2017. Depois, passava a dizer ao que vínhamos: “O que queremos com o Fumaça não é, nem nunca foi, trazer algo de novo aos velhos jornais. Nós queríamos e queremos revolucionar o jornalismo.” E, por fim, servia como uma crítica às redações tradicionais: “Reparem na hipocrisia desta noite: vimos aqui uma vez por ano celebrar O jornalismo, esquecendo que no resto dos dias direções editoriais e administrações não garantem condições para que Ele se faça.”
Mas uma mensagem talvez menos lembrada, agora, anos depois, foi sobre uma injustiça que ainda não foi corrigida. É que, apesar da Maria Almeida ter feito reportagem na Palestina, e ter escrito, editado e narrado esse trabalho, ficou de fora da lista de pessoas premiadas. Porquê? Porque a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) não a considerava jornalista. Disse no discurso: “É triste que ela não esteja aqui para receber este prémio como seu. A Maria exemplifica as contradições do corporativismo da profissão: produziu um trabalho jornalístico premiado com um Gazeta não podendo ser considerada jornalista. Para nós, é bastante simples: é jornalista quem faz jornalismo.”
A razão pela qual a CCPJ não considerava a Maria Almeida jornalista, na altura, era simples: as suas regras prevêem que apenas possa ser legalmente considerada jornalista quem pratica jornalismo como uma profissão permanente, profissional e remunerada. Ora, esse não era o caso da Maria Almeida, pelo menos até 2021. Antes disso, fazia-o, como tanta gente da equipa já o fez no Fumaça, de forma voluntária. Mas como, para nós, é jornalista quem faz jornalismo, e Maria Almeida sempre fez jornalismo no Fumaça, era normal que se apresentasse como jornalista.
Sempre soubemos que a CCPJ tinha uma opinião diferente da nossa, mas a clivagem tornou-se ainda mais clara quando, em 2021, uma dirigente da comissão enviou um email à Maria Almeida dizendo: “Não devias apresentar – te como jornalista, não o sendo. Gosto do projeto, mas não de alguns atropelos às regras básicas do jornalismo como esse em particular de trabalhar em marketing e fazer de jornalista…”. A mensagem soou a ameaça. Não só acusava a Maria Almeida de apresentar-se como jornalista “não o sendo” — um delito que pode ser considerado crime de usurpação de funções —, como dizia também que, ao exercer funções de marketing para o Fumaça ao mesmo tempo que produzia jornalismo, nunca poderia vir a ser reconhecida como jornalista.
Esta ideia resulta da leitura (a nosso ver, errada) que a CCPJ faz do artigo 3.º do Estatuto do Jornalista. O artigo elenca as incompatibilidades com a profissão, como ter funções policiais, militares ou políticas em vários órgão da democracia representativa. E diz também que ser jornalista é incompatível com o desempenho de “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais.”
À partida, entende-se o porquê de ser proibido juntar as duas funções — jornalismo e marketing. Fazê-lo poderia resultar em conflitos de interesse: alguém que estivesse a produzir uma peça jornalística sobre, digamos, crise climática, poderia, ao mesmo tempo, vender publicidade a grandes empresas de energia, para que estas pudessem apresentar-se como bastiões da sustentabilidade. Mas perguntemo-nos: não é isso que acontece, exatamente, em vários órgãos de comunicação social tradicionais, que baseiam os seus “modelos de negócio” em receitas vindas de grandes empresas? Não é preciso grande investigação para encontrar inúmeros exemplos. Só que, para a CCPJ, está tudo bem… desde que a pessoa que fechou o contrato publicitário seja diferente da pessoa que escreveu a peça.
Cumprir com esta regra não é um problema para as grandes redações do país, porque lhes é sempre mais fácil traçar uma linha que separe a redação (de que fazem parte pessoas com carteira de jornalista) das equipas comerciais (de que fazem parte pessoas cujo trabalho é angariar dinheiro). Mas é impossível cumpri-la quando redações são compostas por uma ou duas mãos cheias de pessoas (e que, por vezes, nem pelos dedos das mãos se contam). Quem iria angariar publicidade num jornal local com três jornalistas se não as próprias jornalistas? Quem iria tratar das redes sociais numa redação de jornalismo multimédia com cinco jornalistas se não as próprias jornalistas? Quem iria apelar aos donativos num podcast de jornalismo de investigação com oito jornalistas se não as próprias jornalistas?
Para muita gente, estamos a tentar construir uma utopia. Para a CCPJ, estamos a atropelar as regras básicas do jornalismo. Só que esse jornalismo puro, idealizado pela CCJP, é um que está desenhado para manter o statu quo, onde apenas as grandes empresas de média podem subsistir. Onde só há espaço para quem aposta no tipo de jornalismo que, nas últimas décadas, tem vindo a transformar redações em máquinas produtoras de “conteúdos”, constituídas por jornalistas precárias e mal pagas, obrigadas a multiplicar as peças que publicam sem terem tempo de sequer pensar. A CCPJ trabalha para que o único jornalismo que exista seja exatamente o jornalismo que levou à necessidade de que outro jornalismo fosse imaginado e construído.
Respondemos prontamente ao email recebido em 2021: “A posição que assumimos com respeito a esse assunto não é um telhado de vidro. É uma discordância que temos em relação às regras de acesso à profissão que, aliás, temos vindo a deixar pública há vários anos. Para nós, é jornalista quem faz jornalismo.” Explicámos que, de forma solidária e voluntária, “no Fumaça, todos fazemos um pouco de tudo — jornalismo, contabilidade, gestão, marketing, limpeza. […] Não temos publicidade, não vendemos nada e estamos a experimentar algo novo em Portugal: criar o primeiro órgão de comunicação social totalmente financiado por quem nos ouve, vê e lê. […] E é por isso que discordamos da regra de que ‘o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de […] Funções de marketing […]’ no próprio órgão de comunicação porque tornaria impraticável o desempenho do nosso trabalho. Esta regra está feita à medida de grandes redações, que conseguem traçar uma linha divisória entre a produção jornalística e a distribuição — ambas fundamentais no papel do jornalismo na sociedade. Mas, para projetos de jornalismo como o nosso — independentes de grandes estruturas, com poucas pessoas (somos 7, no total) e organizados de forma horizontal —, é impossível que tal linha se consiga traçar.”
Acrescentámos um outro argumento: a CCPJ tem vindo a interpretar erradamente o Estatuto do Jornalista. Porque, se é verdade que “marketing” é listado como uma das incompatibilidades ao exercer a função de jornalista, lê-se também, exatamente no mesmo artigo, que “3 – Não é incompatível com o exercício da profissão de jornalista o desempenho voluntário de acções não remuneradas de: (…) b) Promoção da actividade informativa do órgão de comunicação social para que trabalhe ou colabore.” Ora, visto que o Fumaça nunca, em quase 10 anos de história, vendeu qualquer publicidade, conteúdo patrocinado ou teve qualquer receita de empresas (todo o dinheiro angariado pelo Fumaça até hoje é resultado de donativos), toda a atividade de “marketing” realizada por qualquer membro da redação pode ser descrita como “promoção da actividade informativa do órgão de comunicação social para que trabalhe”. É exatamente isso que fazemos quando, voluntariamente, oferecemos o nosso tempo e esforço para que o nosso trabalho jornalístico chegue ao maior número de gente possível e que angariemos donativos suficientes para, sem fins lucrativos, sem paywalls e sem dinheiro de empresas, continuemos a conseguir fazê-lo.
Mesmo quando, durante a batalha que mantivemos anos, decidimos trocar a palavra “marketing” para “comunicação”, numa tentativa de encontrar um ponto de acordo entre as duas partes, isso não foi suficiente para a CCPJ.
E, por isso, mesmo depois de emails trocados e reuniões realizadas, a CCPJ levou a sua estratégia um passo adiante. Em 2023, decidiu iniciar processos contraordenacionais contra três jornalistas da nossa redação: eu, Maria Almeida e Joana Teresa Batista. Nos três casos, a comissão acusa-nos de violar o Estatuto do Jornalista, visto que, no nosso website, ao listarmos as áreas em que ajudamos na redação, incluímos “marketing”. Um horror!
A nossa defesa não teve sucesso. Em julho de 2024, a Maria Almeida foi condenada pela CCPJ a uma multa de 200€ (neste momento, a ser contestada em tribunal). Em março de 2025, foi a minha vez: com base na mesma argumentação, fui condenado a uma admoestação (também a aguardar decisão do tribunal). Do processo contraordenacional contra Joana Teresa Batista ainda não temos novidades, mas é crível que vá pelo mesmo caminho. A acontecer, mais de um terço das pessoas jornalistas do Fumaça terão sido condenadas pela CCPJ porque a comissão acha que o seu trabalho é incompatível com jornalismo. Três em oito.
Mas nem se trata apenas de insistir numa interpretação errada da lei. Estas sucessivas sanções contraordenacionais são, na prática, uma tentativa de limitação à forma como o Fumaça (e outras redações) está constituído, já que procuram, mais do que o pagamento dos 200€ ou a aceitação da admoestação, uma alteração à forma como a redação escolhe organizar-se internamente. O resultado é uma inaceitável interferência da CCPJ (e do Estado) no jornalismo; uma forma de censura.
Desde 2010, a CCPJ condenou um total de 13 jornalistas por exercício de atividade incompatível. Para outras nove, os processos foram arquivados por pagamento voluntário das coimas a que foram condenadas. Somando a minha condenação, são pelo menos 23 jornalistas desde 2010, no total. Caso Joana sofra também uma condenação, o Fumaça terá quase 13% de todas as decisões de condenação por incompatibilidade. É mais de uma em cada dez.
E se olharmos com atenção a todas as condenações por exercício de atividade incompatível dos últimos 15 anos da CCPJ, descobrimos algo curioso, mas não surpreendente, dada a composição do plenário da CCPJ (exclusivamente composto por jornalistas de grandes meios, eleitos, e por representantes do patronato, nomeados): é que, das 23 pessoas que sofreram sanções desde 2010, pelo menos 13 trabalhavam como freelancers ou eram parte de órgãos locais, regionais ou pequenas redações – mais de metade.
O mesmo padrão está presente na lista de pessoas cuja carteira foi cassada pela CCPJ. Entre maio de 2023 e janeiro de 2025 (a CCPJ não tem dados mais antigos no website e disse não estar em condições de os enviar ao Fumaça porque “o Secretariado e o Plenário da CCPJ não estão, ainda, completos, encontrando-se os membros já eleitos e os membros designados pelos operadores do sector em processo de cooptação do novo Presidente”), seis pessoas perderam carteira. Todas elas, 100%, faziam parte de pequenas redações: Manuel T. Perez e Sérgio Velhote, da Revista Dragões; Paula Charro, da Associação Mutualista Covilhanense; Artur Arêde, Notícias Ribeirinhas; Sofia Ribeiro, do Jornal Fórum; e Vilma Reis, da Coimbra Coolectiva.
Quase ausentes desta lista está quem ocupa os lugares mais elevados dos maiores órgãos de comunicação social do país. Não constituirá incompatibilidade para a CCPJ diretores de jornais enviarem emails a pedir subscrições? Não constituirá incompatibilidade para a CCPJ quando estes escrevem newsletters a sugerir a leitura das reportagens do jornal que gerem? Ou quando escrevem aos seus leitores a apresentar uma nova campanha, com a possibilidade de ganhar um carro, ou um sorteio para vencer garrafas de vinho?
A resposta é não. Foi-me explicado por uma dirigente da CCPJ quando, em 2023, contestei o processo contraordenacional que me foi imputado, explicando da impossibilidade física da separação absoluta de funções numa redação como a do Fumaça. É simples: a CCPJ não está realmente preocupada em encontrar e punir quem faz marketing e, ao mesmo tempo, faz jornalismo. O que à CCPJ preocupa são as aparências. “À mulher de César não basta sê-lo, é preciso parecê-lo.”, disse-me. O que queria sugerir era que, para resolver este problema, bastava que o Fumaça não dissesse que os seus jornalistas faziam marketing. Retirávamos nós essa palavra do website, e a coisa resolver-se-ia. Como se ser menos transparentes e honestas não fossem, essas sim, incompatibilidades.
A missão da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista não tem sido promover que jornalistas sigam as regras deontológicas da profissão, mas sim fazer com que pareça que seguem. Pelo caminho, vão tentando censurar a resistência ao statu quo dentro da classe. É uma comissão reacionária, que só ficará contente quando todas as pequenas redações se sumirem. Quando toda a gente que pretende revolucionar o jornalismo desaparecer. Até que fiquem os mesmos de sempre.