A utopia do consenso
Mas nem tudo isto é fácil, nem o aprendemos sem fazer erros pelo caminho. O processo de construir utopias, particularmente quando elas exigem imaginar mundos que desafiam as hegemonias com que fomos ensinadas a crescer, é doloroso.

Olá.
O Fumaça não começou como uma redação de jornalismo. Nenhuma das pessoas que fundou o então “É Apenas Fumaça” tinha trabalhado como jornalista ou feito parte de um órgão de comunicação social antes. Éramos apenas um grupo de amigos que, reparando que os meios de comunicação mais tradicionais ouviam sempre as mesmas pessoas, vindas dos mesmos contextos, dos mesmos círculos sociais, pensou: porque não criar um podcast onde outras pessoas podem ser ouvidas e outras narrativas apresentadas? Os primeiros episódios do Fumaça, em 2016, eram apenas entrevistas longas, profundas sobre temas que sentíamos não serem escrutinados noutros meios. Não era um projeto jornalístico, muito menos uma redação de jornalismo de investigação.
Isto também quer dizer que, passados dois anos, as pessoas que tornaram o Fumaça numa redação profissional, com financiamento e a funcionar a tempo inteiro não tinham nenhuma ideia preconcebida de como gerir uma publicação jornalística. Estávamos a desenhar numa folha em branco. Imagina-te no nosso lugar: um grupo de gente amiga, ligada pela ideia de criar um projeto de jornalismo independente e dissidente. Quão estranho seria ter uma de nós chegado a uma reunião, nessa altura, dizendo: “Olá, estamos a trabalhar nisto de forma voluntária há mais de um ano, como amigos. Agora que temos uma bolsa, vamos escolher um patrão.” Só a ideia é já confrangedora. Portanto, a resposta à questão sobre estabelecer ou não hierarquias na nossa redação foi rápida e unânime: não. Éramos amigos, e não é suposto amigos aceitarem hierarquias nas suas relações.
Com o passar do tempo, outras pessoas foram-se juntando ao Fumaça. Já não éramos apenas amigos de longa data, e o que começou como uma decisão informal tinha de transformar-se num modelo estruturado e consciente. Começámos por definir como tomávamos decisões, desinvestindo conscientemente de tomadas de decisão de cima para baixo, onde uma pessoa escolhe o caminho a seguir. Mas também rejeitámos decisões com base em maiorias, porque apesar do voto trazer uma sensação de justiça (a decisão tomada é aquela que a maioria das pessoas pensa que é certa), também dá espaço a que pessoas da equipa se sintam absolutamente desconfortáveis com decisões que terão de subscrever enquanto membros do coletivo. Por isso, chegámos ao consenso: um processo de tomada de decisão onde todas as escolhas são aceites por toda a gente. O antropólogo anarquista David Graeber explica-o melhor do que eu: “O consenso não é apenas sobre concordar. É uma questão de dar a volta às coisas: recebes uma proposta, trabalhas sobre isso, as pessoas prevêem problemas e fazes uma síntese criativa. No final, chega-se a algo que todos acham que está bem, que a maioria das pessoas gosta e que ninguém odeia.”
No Fumaça, todas as nossas decisões são feitas por consenso. O que isto significa, na prática, é que não temos diretores, patrões ou editores fixos. Isso não quer dizer que não temos supervisão ou responsabilização. Muito pelo contrário: o nosso processo de edição é exaustivamente longo, provavelmente o mais longo que vi. Mas os papéis de editora, repórter ou de quem faz verificação de factos são assumidos por diferentes pessoas em diferentes investigações, quase num esquema de rotação (a pessoa que escreve uma história agora pode passar a editar a seguinte e a fazer a verificação de factos numa próxima). Da mesma forma que repórter e editora são responsáveis por fazer com que a história avance, organizamos edições de grupo em cada fase do processo, onde criamos versões em rascunho dos episódios para que toda a gente da equipa possa ouvir e dar a sua opinião. Cada episódio que publicamos passa por, pelo menos, quatro ou cinco sessões de edição coletiva. Em cada uma delas, as conclusões da investigação e escrita da peça são questionadas, linha por linha, e é responsabilidade de quem edita e escreve reestruturar e reescrever uma e outra vez, tentando responder ao feedback recolhido. Só estamos prontas para publicar quando toda a gente está contente com o resultado. Será esta a forma mais eficiente de produzir jornalismo? Tenho a certeza que não. Será que é assim que criamos o melhor jornalismo que conseguimos produzir? Tenho a certeza que sim. O nosso processo de decisão faz com que as escolhas sejam mais lentas, às vezes dolorosamente lentas (como já devem ter reparado), mas é o custo de criar um método jornalístico que nos diferencia de outras redações, centrada em desafiar as nossas conclusões e em procurar erros proativamente.
Aplicamos o consenso a tudo. Enquanto que toda a gente na equipa é jornalista — porque acreditamos que qualquer pessoa que produz jornalismo é jornalista —, nós dividimo-nos em grupos, onde as pessoas assumem responsabilidades de comunicação, gestão de comunidade, edição de som, gestão operacional, angariação de fundos, desenvolvimento web e segurança. As pessoas que trabalham nestas áreas têm o papel de pensar numa estratégia, trazendo-a ao resto da equipa e aprovando-a através de consenso num retiro anual que dura uma semana. Depois, com uma estratégia geral aprovada por toda a equipa, têm luz verde para a pôr em prática. Só há necessidade de voltar a discutir se houver mudanças naquilo que ficou previamente acordado. Caso contrário, toda a gente só tem de ter a certeza que todas as decisões de grupo são anotadas e partilhadas com o resto da equipa. Às segundas-feiras, fazemos uma reunião geral para comunicar atualizações, para que toda a gente possa saber em que pé estamos e haja espaço para dar a sua opinião sobre qualquer assunto que seja relevante.
Mas nem tudo isto é fácil, nem o aprendemos sem fazer erros pelo caminho. O processo de construir utopias, particularmente quando elas exigem imaginar mundos que desafiam as hegemonias com que fomos ensinadas a crescer, é doloroso. Ainda hoje tentamos equilibrar o adequado nível de esforço que cada pessoa da equipa deve colocar em cada área não-editorial da gestão do Fumaça. Ao mesmo tempo que é excitante poder decidir sobre o nosso próprio local de trabalho, sem chefes nem intermediários, é por vezes frustrante ver uma parte significativa do nosso tempo consumida por tarefas que nada têm que ver com jornalismo. Por mais privilegiadas que nos sintamos por sermos, talvez, a redação do país que mais tempo dá a jornalistas para trabalhar nas suas investigações, sem prazos, estar dois anos sem publicar uma série traz um peso com que é difícil viver no dia a dia. Por mais empoderador que seja qualquer pessoa poder dar a sua opinião sobre qualquer tema, a qualquer momento, há momentos em que fazê-lo pode criar sentimentos de que a experiência e conhecimento adquiridos de alguém que há muito vem aprendendo a fazer uma certa tarefa não são valorizados pelo grupo.
Redações não-hierárquicas (ou coletivos horizontais, em geral) colhem os frutos de serem espaços anti-autoritários, onde ninguém se sente pressionado para fazer coisas que odeia. As pessoas sentem que o projeto lhes pertence e podem decidir se querem estar envolvidas em todos os detalhes da gestão da redação se quiserem. Além disso, toda a equipa sabe o que está a acontecer a cada passo, o que reduz a responsabilidade individual de resolver problemas maiores. Se estamos a ficar sem dinheiro para pagar salários, não é porque quem faz angariação de fundos fez asneira — nós tomamos decisões coletivas que nos trouxeram até aqui. Mas claro que também tem as suas desvantagens: é mais lento e menos eficiente, pode incentivar a que haja micromanagement, faz com que o recrutamento de novas pessoas seja arriscado (quando se contrata alguém para a equipa, essa pessoa terá em breve o mesmo poder que todas as outras que fazem parte da equipa há vários anos), e é quase impossível despedir alguém quando as coisas não resultam. Do nosso lado, as desvantagens de gerir uma redação de forma horizontal são apenas desafios que temos de assumir e resolver, horizontalmente e coletivamente. Ninguém, e isto é muito claro para nós, deve ter mais poder do que outra pessoa na equipa.
Estamos há mais de oito anos a construir esta utopia, tentando, na medida das nossas capacidades, criar o espaço de trabalho que mais se aproxima do que ideal (já que não conseguimos abolir o trabalho). É um processo difícil, mas mais bonito por termos milhares de pessoas que contribuem para ele todos os dias. Se não fosse pela Comunidade Fumaça, e mais de 1700 pessoas que contribuem, todos os meses (e agora, também todos os anos), para mantermos a chama acesa, talvez esta loucura já se tivesse esfumado. Assim, continuamos aqui. Se quiseres contribuir para que continuemos a imaginar novos mundos e a desafiar os que hoje existem, considera fazer uma contribuição hoje, em fumaca.pt/contribuir. Como extra, recebes a série Quase da Família por inteiro, dia 12 de dezembro.
Até já,
Ricardo