Um dia venho viver para a Raia

Vim a Pitões das Júnias pela primeira vez há cerca de 10 anos. Foi a Maria Almeida, do Fumaça, que me cá trouxe. Desde então, tenho regressado praticamente todos os anos. Apaixonei-me.

Um dia venho viver para a Raia

Olá.

Em novembro de 2018, já lá vão mais de seis anos, a redação do Fumaça mudou-se durante cerca de uma semana para terras raianas, no Alto Barroso, Trás-os-Montes. Fomos de viagem para o retiro anual que já é ritual por aqui. Dessa vez, assentámos numa pequena aldeia: Pitões das Júnias. Esta povoação, é casa para cerca de 150 pessoas, e está situada a mais de 1000 metros de altura, entre o planalto da Mourela e as montanhas da serra do Gerês — ou, como se diz do outro lado da fronteira, a menos de 5 km, serra do Xurés. Não que importe grande coisa a quem por aqui vive de que lado se está dessa linha imaginária traçada por homens que nunca sofreram com elas. Quem por aqui vive chama a toda esta região Raia. Não Portugal, muito menos Espanha — antes Raia, fronteira. A língua que se fala é a mesma (pelo menos, não há como argumentar que as gentes não se entendem). Os usos e desusos que por aqui se usam são mais próximos das aldeias vizinhas, mesmo que galegas, do que — com certeza — dos de Lisboa, Porto, Braga ou demais cidades e vilas do estado português. Pitões das Júnias está longe da capital e do estado pouco se cá vê. Mas talvez haja em Pitões das Júnias mais vida do que aquela que, aos poucos, se vai destruindo pelas cidades.

Nesta aldeia, as gentes olham para o tempo de outra forma. Há menos relógios nas cabeças, respira-se mais do que se corre o, e os problemas que cá se têm, cá se resolvem também. Ora bate-se à porta a pedir que se mude o carro de sítio para passar o gado, ora oferece-se uma saca de batatas da colheita passada a quem de novo chega, ora arranja-se guarida a quem ficou preso pela neve, já noite escura, ora destranca-se o armazém a disponibilizar lenha para remediar o frio, ora encontra-se um sofá a mais, para encher a sala, com a mobília que sobra ao outro. O som de fundo de Pitões das Júnias é o badalo das vacas que atravessam a aldeia para pastar as serras que ainda são comuns, ou o sino da igreja que vai tocando às meias horas, ou a água fresca que corre nas fontes. Em vez do barulho incessante dos carros da cidade, ouve-se, de quando em vez, uma buzina de uma carrinha de entregas, ou o apito de alguém a acenar a quem passa — o que, de uma forma bonita, faz lembrar a Palestina.

Vim a Pitões das Júnias pela primeira vez há cerca de 10 anos. Foi a Maria Almeida, do Fumaça, que me cá trouxe, aquando de uma das Sexta 13, dia de celebração de bruxas e bruxaria em Montalegre (capital de município), que acontece sempre que o dia 13 calhe ser sexta-feira (este ano há um, em junho). Anos depois, trouxemos o resto da redação para o retiro. Desde então, tenho regressado praticamente todos os anos. Apaixonei-me.


Durante a semana em que a redação do Fumaça por cá passou, aventurámo-nos a pegar no microfone e entrevistar algumas das gentes da Raia com quem nos cruzamos. Não só de Pitões das Júnias, mas também de Vilar de Perdizes, ou da Lobeira. Gravámos essas conversas sem plano nem ideia. Gravámos como quem tem uma desculpa para meter conversa, fazer perguntas, aprender sobre as vidas alheias e costumes desconhecidos. Esses pedaços de áudio ficaram perdidos, fechados numa gaveta online, sem uso. Mas mantiveram-se na minha cabeça até hoje. Na semana passada, após terminar de escrever, depois de anos e anos de trabalho, o 14.º e último episódio da série Fronteira do Medo, que esperamos publicar nos próximos meses, dediquei-me a ouvir o que essas gravações diziam. Uma delas continha este trecho:

(20181116) 181115-003.wav – 00:42 até 01:13 […] 02:05 até 02:18
Ricardo Esteves Ribeiro: Eu um dia venho para aqui viver. Adorava vir para aqui viver. Já disse à Maria [Almeida] que um dia venho viver para Pitões. Eu tenho muitas dificuldades ali na cidade, de algumas coisas. Há muitas coisas ali que me fazem muita confusão. […] Agora, não posso, mas um dia…

Mais de seis anos depois, cumpro esta promessa. A partir deste mês, a redação do Fumaça passa a ter dois membros a residir na aldeia de Pitões das Júnias — eu e a Rafaela Cortez. Passaremos com certeza por Lisboa, para temporadas de reportagem, de gravações, ou até para matar saudades da gente amiga. Mas, viver, viveremos no Barroso. Por isso, se estás por perto ou se sabes de uma história que precisa ser contada, responde a este email (eu prometo responder de volta). Pode ser que se encontre tempo, entre uma investigação e outra, para contar ao mundo como se vive e resiste pela Raia — nem Portugal nem Espanha!

Até já.

Ricardo Esteves Ribeiro,

Pitões das Júnias.