Sindicato de Jornalistas, muleta do capital

Em 2018, inscrevi-me no Sindicato de Jornalistas. Oito anos depois, decidi sair. Agora explico porquê.

Sindicato de Jornalistas, muleta do capital
Montagem de Joana Teresa Batista com base no logotipo do Sindicato dos Jornalistas

Texto publicado originalmente pelo Fumaça, na newsletter semanal da redação.

Foi em 2018 que, pela primeira vez, paguei quotas ao Sindicato de Jornalistas (cujo nome escrevo com "de", apesar de formalmente ser só “dos”). Não foi aí que se iniciou a minha experiência a produzir jornalismo, mas foi aí, sim, que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas passou a permitir-me fazer parte da “classe” (falei já sobre esse órgão numa anterior newsletter). Eu era novo na profissão, não tinha qualquer preconceito sobre o que significava fazer parte dela (até porque nunca antes tinha pertencido a uma redação) e tinha ganas de lutar por melhores condições materiais para mim e quem recentemente tinha passado a chamar camarada. Acreditava eu que o mínimo seria dar força ao sindicato do setor. Ajudar quem já dispendia da sua energia para lutar por mais e melhores direitos para quem trabalhava a seu lado. Não seriam com certeza mais uma inscrição sindical e os poucos euros mensais que ela significava a fazer a diferença. Mas a minha, juntamente com a de tantas outras pessoas, empurraria a balança para o nosso lado, nem que fosse só um pouco.

Sete anos depois, tenho de admitir que estava enganado. E foi por isso que, em setembro do ano passado, decidi desvincular-me do Sindicato de Jornalistas. 

Não me apercebi do meu engano de um momento para o outro, nem comuniquei a decisão por energia prematura. A saída foi fruto de uma longa e dolorosa caminhada de desilusão em desilusão. Anos de falta de solidariedade e camaradagem, incompetência e, acima de tudo, reformismo. Vamos por partes.

A primeira desilusão que me recordo de ter com o Sindicato de Jornalistas surgiu em 2019. Não foi resmungo de especial importância, reconheço, mas ficou sempre a pairar, como que dando sinal de que talvez não se possa confiar cegamente por melhores que sejam as intenções. Ainda não tinha passado um ano desde que me tinha vinculado ao sindicato, e ligava-me uma pessoa da sua direção a pedir-me que gravasse um vídeo a apelar, como jornalista, ao voto nas eleições europeias desse ano. A ação fazia parte de uma parceria com a própria União Europeia. O Sindicato dos Jornalistas tinha recebido uma subvenção para “promover uma série de iniciativas para fomentar o debate sobre o Parlamento Europeu, entre jornalistas e estudantes de Jornalismo e Comunicação”. 

Surpreendeu-me, o pedido. Respondi que não sentia ser meu papel, enquanto jornalista, apelar ao voto em eleições, até porque achava absolutamente válida a escolha de não votar por quem não acredita que é através da democracia representativa que devemos gerir as nossas vidas. Mas, mais do que surpreendente, achei estranho que um sindicato representante de uma classe responsável por escrutinar e desafiar o poder aceitasse receber subvenções desse poder para apelar à importância de o reconhecer e perpetuar, através de eleições. Anos depois, a campanha de apelo ao voto é ainda um dos destaques da secção de “imprensa” do website do Sindicato (um terço das notícias apontam para este projeto), sugerindo a sua importância para a instituição.

A segunda desilusão com o Sindicato de Jornalistas aconteceu no ano seguinte, em 2020. Fez o passado domingo cinco anos desde que a PSP encerrou à força o centro social Seara, no Largo de Santa Bárbara, em Lisboa. Na manhã de 8 de junho, em plena pandemia, várias pessoas — incluindo algumas em situação de sem abrigo — foram violentamente despejadas. Cá fora, muitas das que mostravam solidariedade ou reportavam o que se passava (como eu), foram agredidas. Levei com gás lacrimogéneo, fui empurrado com bastões, imobilizado com um braço atrás das costas e empurrado duas vezes contra a parede, já fora do perímetro de segurança. No total, gritei 22 vezes “sou jornalista” e identifiquei-me como tal segurando a carteira profissional na mão, enquanto empunhava um microfone e fazia repetidamente duas simples perguntas: “Porque é que estão a empurrar as pessoas?” e “Alguém fez alguma ilegalidade?”. Se é verdade que o Sindicato de Jornalistas prontamente publicou um comunicado em solidariedade comigo e se mostrou disponível para me defender num processo-crime contra o agente da PSP responsável, a verdade é que as advogadas que escolheram para me representar cometeram o que consideraria erros básicos durante o processo, como a não a constituição como assistente, ou optaram por se focar numa queixa judicial por ofensa à integridade física, em vez de pela limitação ao direito de jornalistas em informar. Talvez os erros expliquem em parte porque, cinco anos depois, o Ministério Público decidiu arquivar o processo sem mais.

Em 2021, voltaram os problemas com o apoio jurídico do Sindicato de Jornalistas. Depois da publicação da série Exército de Precários, resultado de uma investigação de dois anos no interior da segurança privada em Portugal, recebemos na redação do Fumaça uma carta assinada por uma advogada em representação da Strong Charon, uma das maiores empresas de segurança privada em Portugal, parte do grupo Trivalor. Ameaçava iniciar “procedimentos criminais” contra três jornalistas do Fumaça (eu incluído) envolvidos na produção da série. Acusava-nos de fazer “imputações falsas e altamente ofensivas do bom nome e honra da Strong Charon” e advertia-nos de que deveríamos “retirar de imediato as publicações referidas” e, ainda, de que nos devíamos abster “de proceder a quaisquer outras publicações ofensivas do bom nome e reputação da Strong Charon.” 

Ao receber a carta, pedimos imediatamente apoio ao Sindicato de Jornalistas. Mas ao falar com o advogado indicado para a nossa representação, este foi claro: não só achava banal esta tentativa de condicionamento como repudiava a nossa decisão de publicar a carta na íntegra e responder diretamente à empresa: "Efetivamente, temos uma divergência profunda e inultrapassável sobre o que é um Estado de Direito Democrático! Eu não gostaria de viver num Estado em que imperasse o vosso entendimento.". Também essa direção do Sindicato de Jornalistas, presidida por Sofia Branco entre 2014 e 2020, achou absolutamente normal jornalistas serem ameaçados por uma grande empresa. Faz parte, defendeu. E, com isso, recusou pronunciar-se publicamente sobre este assunto: “Os diferendos que surgem na sequência de notícias ou reportagens que não agradam aos visados são recorrentes nos órgãos de comunicação social, que lidam internamente com os casos, defendendo o seu ponto de vista, mesmo que, para isso, tenham de recorrer aos tribunais. Nesse sentido, e salvaguardando a independência e autonomia dos órgãos de informação, a Direção do SJ entende que não deve pronunciar-se publicamente sobre esta matéria, mantendo total disponibilidade para apoiar juridicamente os jornalistas seus associados.” Pagámos outra representação jurídica, mesmo servindo as quotas que pagavam todos os jornalistas ameaçados para financiar a representação oferecida pelo Sindicato.

Na altura, partilhei com o resto da redação como esta decisão me tinha desiludido. Foi aqui que algo começou a mudar. Mas ainda acreditava, nesta altura, que a melhor maneira de lutar contra este inadmissível conformismo e reprovável falta de solidariedade era manter-me sindicalizado, votar nas suas eleições internas e utilizar a minha pertença à organização para criticar as suas ações. “Não me vou desvincular, exatamente para poder fazer essa crítica da maneira mais eficaz.”, escrevi ao resto da equipa.

Só que, em 2024 caiu a última gota de água. A 31 de dezembro do ano anterior, enquanto reportava uma detenção da PSP numa manifestação em frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa, fui agredido à bastonada por um agente de uma Equipa de Intervenção Rápida, depois de me ter identificado como jornalista. Denunciei a agressão a vários órgãos, incluindo ao Sindicato de Jornalistas, e à Inspeção Geral da Administração Interna, que abriu um inquérito do qual ainda hoje não se sabe novidades.

Num primeiro momento, a direção do Sindicato de Jornalistas mostrou-se preocupada. Apesar de não ter publicado qualquer comunicado sobre o assunto, o presidente do órgão — desde 2021 é Luís Filipe Simões — ligou-me para marcar uma reunião, mostrando solidariedade. Só após um mês, e dois emails de lembrete, se agendou a reunião, em que participou outra advogada do sindicato. No fim, foi-me pedido que enviasse uma série de documentos, o que fiz prontamente. Do lado do Sindicato de Jornalistas, Luís Filipe Simões prometeu ação pronta, incluindo iniciar uma queixa-crime contra a PSP, em nome do sindicato. Esta promessa aconteceu a 14 de fevereiro de 2024. Desde aí, nada mais soube sobre este processo. Mesmo depois dos meus recorrentes emails de follow-up, mostrando desilusão e pedindo novidades, nunca uma única palavra surgiu do outro lado. Nada. Mais de um ano de total silêncio até ao momento em que escrevo este texto.

Quando, em 2018, me juntei ao Sindicato de Jornalistas, com ganas de lutar por melhores condições para a classe, acreditava mesmo que era pela luta sindical que trabalhadores poderiam fazer a diferença. Só que percebo hoje que, por melhores que sejam as intenções e mais bondosas que sejam as pessoas à frente dos sindicatos, nunca eles conseguirão realmente fazer frente às opressões concretas de que sofremos. Não é para isso que servem. 

Diz o Sindicato de Jornalistas que “luta intransigentemente pela defesa dos direitos, individuais e colectivos, e pelo escrupuloso cumprimento dos deveres, em particular deontológicos, dos/as jornalistas, pela defesa intransigente do seu direito de acesso à informação, em nome do direito dos e das cidadãs a serem informados/as com rigor e seriedade.” Servem de intermediário entre os patrões e os trabalhadores-jornalistas, negociando, a cada passo, condições um pouco melhores do que aquelas que têm hoje ou tiveram ontem. Tirando parcas e espaçadas propostas de alteração legislativa para a facilitação da criação de cooperativas jornalísticas (e a ação durante o PREC que, dado o contexto, foge da norma), o Sindicato de Jornalistas não coloca em causa a própria relação patrão-trabalhador. Não defende nem defenderá, de forma sistémica e fundacional, o derrube concreto da figura “administração”, “direção”, “chefia”. Não serão inerentemente contra a autoridade, pela ação direta. São, em essência, capitalistas e reformistas. 

Uma das pistas disto mesmo lê-se num dos comunicados escritos pelo sindicato aquando da agressão policial contra Bernardo Afonso, do Fumaça, e João Biscaia, do Setenta e Quatro, no início de 2024. Apesar de se mostrar indignada com a agressão, a direção do Sindicato de Jornalistas sente necessidade de, simultaneamente, legitimar o exercício estatal da violência: “O Sindicato dos Jornalistas reconhece que as forças de segurança são essenciais para a manutenção da ordem constitucional e da democracia de qualquer sociedade livre e desenvolvida.”

O problema não é sequer exclusivo do Sindicato de Jornalistas. É um problema do sindicalismo. Para que os sindicatos possam exercer a sua função de representação de gente trabalhadora, têm de ser aceites como válidos representantes pelos patrões. Para que os patrões os reconheçam como válidos representantes, têm de reconhecer a sua autoridade e comportar-se dentro da “decência” negocial. Para que sejam vistos como decentes negociadores, os sindicatos têm de limitar-se a lutas legalizadas, pacíficas, reformistas e “realistas”, co-existindo com os patrões. É por isso que, tantas vezes, ouvimos dirigentes sindicais dizer algo como “essa exigência não se pode fazer porque nunca seria aceite pelos patrões”. Daí, é natural que as únicas conquistas que os sindicatos dos dias de hoje conseguem sejam pequenas, progressivas melhorias que patrões estão disponíveis a entregar. 

Como escreveu Alfredo M. Bonanno no livro Anarchy & Workerism, o sindicalismo “pode ser resumido como colaboração com as estruturas do capitalismo. [...] Temos de perceber que o movimento trabalhadores no seu disfarce tradicional é um movimento de trabalhadores e dos seus líderes cujo único interesse é inserir-se dentro das lógicas do capital para conseguirem ficar o melhor possível. É tempo de pararmos de criar ilusões neste aspeto [...], não podemos evitar o que é o caso: o movimento sindical não é um movimento revolucionário.”

Não vejo que o Sindicato de Jornalistas pretenda mais do que melhorar ligeiramente as velhas práticas laborais. Ora, é exatamente isso que o Fumaça, desde o início, tentou contrariar. O que queremos é participar de uma revolução no jornalismo. Sem hierarquias, sem direções, sem patrões, diretores ou administrações. E as duas visões são incompatíveis.

Em 2019 participei da Conferência Financiamento dos Média, a convite do Sindicato de Jornalistas. Fiz parte de um painel onde se falava de “responsabilidade social e modelos alternativos”. No dia anterior, o Sindicato tinha convidado nada mais nada menos do que o Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva, para abrir o programa, falando no palco sem contraditório. Notem a ironia: o grupo de representantes da classe que se distingue por ser contra-poder a convidar o político que tutela a sua área para dizer o que bem lhe apetecer. Horas depois, era a altura de convidar vários diretores de alguns dos maiores órgãos de comunicação social para um painel onde disseram o que bem lhes apeteceu. Uma ode ao statu quo.

Pois, é esse mesmo o rumo desafortunado do sindicato e do sindicalismo. Manter tudo no seu curso natural, aumentando salários aqui e ali, obtendo mais uns direitos, aqui e ali. Mas nunca indo à raiz do problema: a relação patrão-trabalhador, o capitalismo. Por isso, o Sindicato de Jornalistas será sempre um instrumento do poder.

No discurso que fiz nesse dia, disse: “Se a discussão sobre a sustentabilidade do jornalismo for séria, ela terá em conta uma profunda remodelação do sistema, oferecendo condições dignas a quem trabalha, sem falsos recibos verdes, sem salários miseráveis que obrigam a escolher entre comer e dormir e que recusam o direito a constituir família, que deixam centenas de pessoas agarradas pelo pescoço. Sem a obrigação de escrever oito peças por dia para encher a homepage. E que, acima de tudo, volte a dar tempo a quem faz jornalismo: tempo para pensar, investigar e aprofundar. É essa a revolução de que precisamos. E a discussão sobre como fazê-la tem de começar já. O que me parece evidente é que essa revolução não partirá de quem tem poder. Sérgio Figueiredo, diretor de informação da TVI, dizia ontem, aqui no palco, que “o maior desafio está colocado aos gestores”. Vou-vos ser sincero: tenho medo disso. Nunca as revoluções foram feitas por quem tem poder – quem tem poder, não quer deixar de tê-lo. Como escreveu, em 1979, Audre Lorde, “negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta” (como ela própria se descrevia), “the master’s tools will never dismantle the master’s house” (ou seja, “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a sua própria casa”). Sendo assim, só existem duas opções: ou destruímos a casa, ou usamos novas ferramentas.” 

Para já, o Sindicato de Jornalistas parece estar contente em servir de muleta ao capital. Eu prefiro desvincular-me.

Até já,
Ricardo Esteves Ribeiro