Já não somos progressistas

Hoje, deixamos cair uma das palavras: progressista. A decisão não foi feita de ânimo leve nem cabeça fria. Talvez tenha sido resultado de vários anos de auto-reflexão, aprendizagem e até mudança política.

Já não somos progressistas

Olá.

Foi em dezembro de 2016 que, pela primeira vez, pensámos o Fumaça como um projeto progressista. Em boa verdade fui eu, até, quem o sugeriu. Eu mesmo, este que vos escreve hoje esta carta contra o progressismo. A ideia surgiu depois de ouvir um discurso de Juan González, um dos fundadores do Democracy Now!, num evento de celebração do 20.º Aniversário da redação. O Democracy Now! tinha sido uma das maiores inspirações para o Fumaça quando, a meio de 2016, decidimos criar o podcast. E Juan González descrevia-o como “notícias, informação e análise alternativas e dissidentes, fundamentadas em factos e investigação, e ao serviço do progresso social”. Foi inspirado por este discurso que propus o que, na altura, acabou por moldar a forma como ainda hoje nos apresentamos:

Se seguem o Fumaça desde a sua génese, lembrar-se-ão que, durante um tempo, nos apresentámos como “É Apenas Fumaça, onde se fala sobre a sociedade com quem quer falar sobre ela.” Progressivamente, esse slogan passou a dar lugar a um outro: 

Fumaça, jornalismo independente, progressista e dissidente.

Hoje, deixamos cair uma das palavras: progressista. A decisão não foi feita de ânimo leve nem cabeça fria. Talvez tenha sido resultado de vários anos de auto-reflexão, aprendizagem e até mudança política. A verdade é que, se, em 2016, o termo “progressista” assentava bem a toda a gente que compunha a redação, não é o caso hoje. Há quem utilize esse termo para definir-se, mas há também quem seja veementemente contra. Eu sou uma dessas pessoas. 

A ideologia do “progressismo” tem origem não antes do século XVII, XVIII. Defende que a ação política deve focar-se em “evoluir” a “humanidade”, através de reformas sociais, tecnológicas e culturais que a transformem desde a “barbárie” até à “civilização” — progressivamente até à iluminação. A teoria desenvolveu-se na Europa, principalmente durante os períodos designados de iluminismo e liberalismo, absolutamente interligados: se o primeiro forçou o debate sobre a separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, o segundo apontou para a defesa da liberdade individual e da propriedade privada. Ambos serviram de base para a criação de várias das instituições que hoje tentam governar as nossas vidas de maneira hegemónica, como os estados-nação, o capitalismo, ou as polícias (sobre a criação das primeiras polícias, por volta do século XIX, saberão mais na série Fronteira do Medo, que, esperamos, está para breve). 

Reconheço que, há nove anos, era partidário destas teorias e me aproximava politicamente destes movimentos. Acreditava que o combate político se fazia dentro da democracia liberal, representativa, através de reformas que empurrassem os governos, os estados e as sociedades para “a esquerda”, procurando o progresso social com base no conhecimento científico, rumo à “igualdade”, à “prosperidade” e ao “respeito pelo ambiente”. Só que, hoje em dia, entendo como o progressismo é uma armadilha. Uma moeda de troca criada pelas elites políticas e económicas como forma de compensação pela criação de sistemas de opressão desenhados para perpetuar desigualdades. Assim, com a promoção da propriedade privada, criou-se a ilusão de que, progressivamente, qualquer pessoa poderia ascender socialmente até, um dia, deter propriedade. Com a criação das polícias, criou-se a ilusão de que, progressivamente, elas poderiam ser menos brutais e mais respeitadoras das gentes. Com a hegemonia do capitalismo, criou-se a ilusão de que era possível corrigir as desigualdades económicas até chegar à igualdade.

O progressismo ganhou ainda mais preponderância no século XX, de mãos dadas com a social-democracia. Hoje, é comum ver o termo ser empregado pela maioria da esquerda, desde pessoas da Academia, aos coletivos dos movimentos sociais, aos representantes políticos de vários partidos. Há até progressistas na direita — usualmente definidos por serem partidários de estado mínimo, da preponderância da iniciativa económica privada, mas a favor dos “direitos humanos”, da “igualdade”, dos “direitos das minorias” e do “progresso”. O que estes campos políticos têm em comum é que todos acreditam no estado, nas reformas como base das transformações políticas e na necessidade de encontrar maneiras de conviver com o capitalismo, ao invés de construir mundos à parte dele. 

O progressismo é, na sua essência, anti-revolucionário, moderado. Mesmo que acredite na “revolução”, crê nela como um acontecimento que se dará um dia, lá longe, depois de, progressivamente, se forçar mudanças passo-a-passo. O progressismo não acredita em mudanças bruscas, hoje, já. É contra a política prefigurativa — a de criar hoje os mundos que queremos que existam amanhã. 

Mas o progressismo é, também, uma teoria que, alicerçando-se na evolução tecnológica e no conhecimento científico para perpetuar a evolução desde a “barbárie” até à “civilização”, se baseia na rejeição generalizada do conhecimento ancestral, dos usos e desusos tradicionais, rurais, indígenas. De maneira simplista, assumo, pode dizer-se que o progressismo defende que tudo o que veio para trás é pior e tudo o que virá adiante é melhor. Só que esta maneira de pensar é uma das causas do colapso a que assistimos à nossa volta. Talvez se procurássemos aprender com quem veio antes de nós, saberíamos melhor desafiar as opressões que nos são impostas, como a autoridade do estado, a propriedade, o trabalho ou, claro, a catástrofe climática. As práticas ancestrais explicam-nos que, ao invés de tentar “respeitar o ambiente”, como defendido pelos progressistas, devemos entender como nós somos o ambiente, fazemos parte. Não como deuses, limitando os danos que produzimos ao serviço do crescimento perpétuo. Sim como pares, lado a lado com todas as outras criaturas, cuidando umas das outras.

É importante que fique claro que esta crítica ao progressismo é pessoal. Não é defendida por todas as pessoas da redação, nem um manifesto coletivo, do Fumaça. Mas serviu como faísca para a discussão que, em fevereiro, no nosso retiro anual, nos fez decidir deixar cair essa palavra dos nossos textos de apresentação. A partir de agora, somos:

Podem ler mais sobre nós no texto que apresentamos hoje, aqui. Diz o que achas.

Até já,
Ricardo Esteves Ribeiro.