Era água de rio que poderia dizer-se corria, se lhe permitido fosse.
Melhor: se dos peixes se fizesse força suficiente para lhe libertar o caudal.
Presa de paredes e de betão e de cimentos.
De barragens físicas e de outras nem tanto,
não fosse esta história imaginada de fantasias das que fazem sorrir no fim.
Dizíamos então que ao rio se lhe barravam o leito
enquanto, ao fundo, peixes de carnes famintas,
de fome e de liberdade,
se olhavam (não nos olhos, dada a vergonha)
e se esganavam uns aos outros,
para sacio próprio e dos seus.
E, enquanto se matavam, se digladiavam,
em polvorosas raivas de sangue fervente,
uns contra outros, escamas contra escamas,
cores distintas e raça única,
25 tostões no bolso e um mundo inteiro em colapso à sua volta,
olhava de cima quem de cima se ria,
sabendo que não só de paredes e de betão e de cimentos se fazia esta prisão.
Até que ao invés de se destruirem,
juntaram-se os peixes em cardumes de afinidade e de afinco.
Aí, a barragem desabou.
E de lá do fundo do rio se ouviu
dos peitos de peixes camaradas:
“Porra, finalmente o rio desaguou!”*
Azambuja,
29 de março de 2023,
Ricardo Esteves Ribeiro.
*Poema inspirado num excerto de FMI, de José Mário Branco:
Tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas
A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias
Ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel
Que se some nas areias em plena praia
Ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!